Sob a Névoa da Guerra

•21/02/2013 • Deixe um comentário

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O ex-Secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert McNamara, é, antes de tudo, uma personalidade controversa. Visto por alguns como um estadista sagaz, preparado para lidar com situações extremas como a Crise dos Mísseis em Cuba, e por outros como o arquiteto de uma cruel máquina de guerra capaz de despejar bombas incendiárias e agente laranja em civis, é indiscutivelmente um dos atores-chave para a compreensão da segunda metade do século XX e do conjunto de conflitos que recebe o nome de Guerra Fria.

Baseado numa entrevista com o próprio McNamara, do alto dos seus oitenta e cinco anos, este documentário explora os momentos marcantes da história de sua vida e, por extensão, dos conflitos globais. Apesar de sua carreira contar com a presidência da Ford Motors e com treze anos à frente do Banco Mundial, o foco são os dois períodos mais críticos: a fase final da Segunda Guerra Mundial, na qual atuou como membro da inteligência durante os bombardeios ao Japão, e a Guerra do Vietnã, da qual, já no governo, foi um dos artífices. Paralelamente, grande peso é atribuído à crescente oposição doméstica na tomada de decisão na condução desse conflito no sudeste asiático. Repleto de cenas e gravações telefônicas originais, condensa de forma bastante clara um período de tempo que, além de ser contado em décadas, possui um enorme número de acontecimentos relevantes. Ganhou o Oscar de melhor documentário em 2004.

Assim como em outras narrações onde as pessoas têm a prerrogativa de falar de si mesmas, é fácil descrever os eventos sob uma ótica que favorece o entrevistado. A própria seleção dos temas já é um corte da realidade que induz à empatia. Isso, entretanto, não impede os produtores de eventualmente confrontá-lo com perguntas do tipo “você sabia que cem mil civis iriam morrer quando atacassem Tóquio?” ou “Você se sente responsável pela guerra?”. Misturando reponsabilidades assumidas com contemporização, percebe-se que a política internacional não reside nas ações de um único homem, por maior que seja sua capacidade individual ou parcela de poder.

Título Original: The Fog of War
Direção: Errol Morris
País: Estados Unidos
Duração: 95 minutos
Ano: 2003

Intocáveis

•30/01/2013 • 4 Comentários

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Grande lançamento do ano, tornando-se o título francês mais assistido fora da França ao desbancar O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, conta a história real da amizade inusitada entre dois homens separados pelo nível de renda, pela idade e pelas condições físicas, mostrando até que ponto essa ligação é capaz de transformar a vida dos envolvidos. Arrebatou uma série de prêmios internacionais e lançou Omar Sy como personalidade preferida dos franceses.

Na trama, um tetraplégico milionário abre uma vaga de cuidador e imediatamente recebe vários profissionais altamente qualificados, mas que, segundo sua percepção, careciam de algo que poderia ser traduzido como uma essência de vitalidade que ele tanto necessitava. Contrariando as vozes discordantes ao seu redor, ele seleciona o mais improvável dos candidatos: um jovem deseducado, morador de um bairro pobre, sem instrução, com um passado duvidável e cujo interesse se resumia a conseguir uma assinatura da entrevista para entrar com o seguro desemprego. A partir desse momento, nasce uma relação de aprendizado e confiança, onde aos poucos o rapaz tanto melhora como pessoa quanto influencia positivamente o sóbrio ambiente no qual está inserido com sua personalidade alegremente dissonante.

Assim como o genial O Escafandro e a Borboleta, este também tem o mérito de não deixar a narrativa presa ao melodrama da deficiência física em si, preferindo direcioná-la para uma visão mais abrangente do relacionamento entre os personagens, inclusive pontuando com bons momentos de humor inesperado. O comportamento, o sotaque, os interesses, tudo é origem de uma discrepância tão gritante quanto construtiva. Nem a música clássica nem a arte moderna, repletas de significado para quem convive com elas, escapam da interpretação irreverente do olhar simples. É também uma oportunidade de conferir uma Paris pouco mostrada em filmes: subúrbios de imigrantes com famílias numerosas, onde, assim como aqui entre nós, reinam o desemprego, a pobreza e a violência.

Título Original: Intouchables
Direção: Olivier Nakache e Eric Toledano
País: França
Duração: 112 minutos
Ano: 2011

Cairo 678

•05/04/2012 • 1 Comentário

A Primavera Árabe, ao derrubar longas ditaduras que mantinham a população sob um permanente estado de vigilância, permitiu o florescimento de uma série de manifestações culturais voltadas para a abertura política e a participação democrática, sempre com ênfase no seu distanciamento dos grupos islâmicos fundamentalistas até então predominantes nos movimentos de oposição. Nesse contexto, surgiram os primeiros filmes árabes pós-revolução, já livres o suficiente para criticar a realidade de países marcados pelo desemprego, má distribuição da imensa renda advinda dos recursos naturais e ausência de direitos que em outras regiões do mundo já estão estabelecidos há décadas.

Algumas dessas produções foram exibidas no Festival de Cinema do Rio do ano passado, como esse filme egípcio que denuncia a humilhante situação das mulheres em uma sociedade fortemente machista e patriarcal. Foca em três personagens que, assim como outras centenas de jovens, sofrem com a rotina de abusos em ônibus e com várias outras formas de assédio sexual agressivo, em qualquer lugar em que se encontram: nas ruas, nos táxis, em repartições públicas e até mesmo no local de trabalho. Intimidadas por um círculo social francamente misógino, elas não encontram suporte nem nas próprias famílias. Sem conhecerem meios para se defender, tornam-se pessoas instrospectivas, com baixíssima auto-estima e, obviamente, infelizes.

Uma delas, entretanto, decide criar um grupo de apoio às vítimas, onde ela desenvolve um trabalho para que essas pessoas tragam à tona as situações que vivenciaram e lutem pelo respeito que merecem, mesmo que para isso tenham que enfrentar descrédito, hostilidade e opiniões medievais como aquela que motivou as passeatas Slut Walk em todo o mundo: “se você realmente passou por isso é porque você incitou o homem através de suas roupas ou de seu comportamento”. Elas passam a portar armas leves, como agulhas e pequenos punhais, e reagem aos ataques, chamando atenção da polícia e jogando o assunto na mídia.

É uma ótima maneira de demonstrar que não basta uma mudança no âmbito político para que os hábitos culturais arraigados pelos séculos sumam de uma hora para outra, como se a existência de eleições diretas para presidente fosse automaticamente transformar os cidadãos em pensadores livres com idéias progressistas. Ao contrário, é preciso um enorme esforço para que seja construída em sua base uma sociedade efetivamente menos desigual e mais tolerante, missão para a qual esse filme certamente fez sua contribuição.

Título Original: 678
Direção: Mohamed Diab
País: Egito
Duração: 100 minutos
Ano: 2010

O Artista

•25/03/2012 • 1 Comentário

É preciso realmente muita coragem para lançar um filme mudo e preto-e-branco em uma era marcada pelos avanços tecnológicos de imagem e som, cuja aclamação costuma cair sobre ícones do cinema-vertigem, como Senhor dos Anéis e Avatar, ainda mais no momento ascendente da onda 3D. Os sete prêmios BAFTA, o prestigioso prêmio de melhor ator do Festival de Cannes e os cinco Oscars, entretanto, mostram que essa aposta foi muito bem sucedida. Revisitando a linguagem da aurora da sétima arte, o diretor trouxe à vida não apenas uma técnica, mas toda uma época de glamour saudosista que encanta e diverte.

Na trama, um consagrado ator de cinema mudo vê o surgimento do cinema falado. Bastante seguro de si e das obras em que atua, ele desdenha da inovação, e essa arrogância o impede de dar credibilidade à verdadeira revolução que se desenrola diante de seus olhos. Em pouco tempo, passa do estrelato ao ostracismo, e logo tem que aprender a lidar com a depressão e com os problemas financeiros. Paralelamente, uma jovem atriz, cuja entrada no show business ele mesmo proporcionou, vive a ascenção meteórica de sua carreira. Antigos amantes, são separados por uma geração e pela fama, mas isso não a impede de tentar ajudá-lo a superar a má fase.

Apesar de mudo, o filme não é nada silencioso: além da trilha sonora instrumental harmonizada com as cenas, responsável por grande parte da beleza da obra, não deixam de ser utilizadas algumas sonoplastias incidentais quando isso representa uma necessidade da própria narrativa, como quando é preciso deixar explícita a ruptura entre o passado e o presente repleto de sons e música. Essa característica somada à abordagem claramente metalingüística são, evidentemente, um afastamento consciente da linguagem original que pretende representar, mas permite uma proximidade e uma compreensão significativamente maiores ao expectador moderno do que seriam se fosse feito de outra forma.

Roupas, veículos e cenários ajudam a recriar o ambiente ideal para que o estilo assuma sua forma e, assim como nos filmes de Chaplin, a ausência de falas traz uma importância muito grande às seqüências, aos gestos e às expressões, pois eles são secundados apenas por esporádicas caixas de texto entre uma cena e outra. Por causa disso, várias idéias devem ser passadas confiando-se apenas na comunicação humana que independe de idioma, e sempre impressiona ver a quantidade de emoção que pode ser percebida sem que uma única palavra seja dita.

Título Original: The Artist
Direção: Michel Hazanavicius
País: França / Bélgica
Duração: 100 minutos
Ano: 2011

Tartarugas Podem Voar

•15/03/2012 • Deixe um comentário

Na fronteira entre o Iraque e a Turquia, na inóspita região do Curdistão, um grupo de órfãos de guerra luta para sobreviver em um acampamento de refugiados onde praticamente não há adultos. Abandonadas à própria sorte, as crianças mais velhas responsabilizam-se pelas mais novas, tirando seu sustento da inacreditável tarefa de percorrer campos minados para desenterrar os artefatos explosivos e vendê-los no mercado negro. O trabalho é organizado por um adolescente extrovertido que, devido a seu parco conhecimento de inglês e de instalação de antenas parabólicas, torna-se uma espécie de líder comunitário.

A história se passa nas semanas que antecederam a invasão estadunidense ao Iraque, movimento que depôs o ditador Saddam Hussein, cujo partido Baath era o principal responsável iraquiano pelas sagrentas perseguições aos curdos. Foca-se em três crianças da mesma família: uma menina, mais velha, um menino e um bebê, sendo os dois últimos deficientes físicos. Impressiona o incomensurável esforço empreendido para a sobrevivência em um ambiente onde tudo é escasso. Dormindo em barracas desconfortáveis, sem acesso razoável a água ou a comida, as pessoas são jogadas quase ao estado de natureza, exatamente na idade em que a mentalidade do ser humano é formada.

A partir dessa visão, é possível perceber a enorme distância que existe entre as decisões governamentais tomadas em nível macro e a rotina das pessoas que vivem à margem de qualquer tipo de auxílio ou de jurisdição efetiva de um estado. Por mais que, em última análise, suas vidas sejam o resultado de conflitos que sequer compreendem, o movimento contrário, de melhoria concreta através da interrupção de hostilidades, passa ao largo de qualquer visão imediata possível.

É evidente que não se pode esperar uma produção com a qualidade técnica à qual o cinema mundial já chegou, até mesmo porque este foi o primeiro filme produzido pelo Iraque após a mudança de regime e utilizou refugiados reais, e não atores, nas filmagens. Entretanto, o realismo apresentado e suas emoções associadas ultrapassam em muito o necessário para uma obra ser bem classificada.

Título Original: Lakposhtha parvaz mikonand
Direção: Bahman Ghobadi
País: Irã / França / Iraque
Duração: 98 minutos
Ano: 2004

O Homem que Virá

•05/03/2012 • Deixe um comentário

O grande dilema dos filmes de gênero é ter de viver no exíguo espaço que existe entre a realização do leitmotif, recriando as características que cativam os fãs do estilo para atender suas expectativas, e a necessidade de gerar conteúdo inovador, para fazer com que a obra se destaque das demais. Quem assiste a um filme de guerra, por exemplo, espera encontrar vários elementos que o qualificam como tal, mas também não quer apenas rever as mesmas situações e desdobramentos, por melhores que sejam. Existe um esforço para fazer com que o desenvolvimento seja equilibrado o suficiente para satisfazer tanto um lado quanto o outro. Por causa disso, todo trabalho desse tipo é, antes de tudo, um prisioneiro de si mesmo.

Isso não significa, entretanto, que o filme não seja bom. Pelo contrário: muitos alcançaram o nível elevado de qualidade exatamente por encontrar a fórmula que sintetiza o legado e a inovação. No caso específico deste, a história se passa em uma comunidade rural italiana nos idos de 1943, quando toda a Europa estava engolfada no terror da Segunda Guerra Mundial. Como o país era governado por fascistas aliados à Alemanha, as tropas nazistas tinham livre trânsito em todo o território, causando pânico e ressentimento nos moradores, e entrando em confronto direto com a Resistência Italiana que se desenvolveu na região.

Os elementos típicos dos filmes de guerra estão lá: a violência, o medo, a escassez de bens, a arbitrariedade do invasor. O ponto diferencial, porém, é o fato de a narrativa seguir a visão da filha caçula de uma família numerosa, para quem os eventos são completamente desprovidos de significado. Bastante introspectiva, não faz idéia de que existe uma guerra em andamento. Os soldados alemães e os guerrilheiros italianos são apenas estranhos que vêm e vão, e sobre os quais os pais conversam em termos incompreensíveis. Muito mais próximos estão a rotina da casa, sua mãe grávida e “homem que virá”, seu irmão nascituro. Apesar de tentarem manter o clima de normalidade, aos poucos os efeitos da guerra são sentidos, até o ponto de afetarem de vez o círculo imediato da menina.

O foco nos camponeses afastados do teatro dos grandes eventos é também uma diferenciação em relação aos demais filmes que representam o período, geralmente ligados ao campo de batalha, a prisioneiros ou a centros urbanos. Mostra, assim, como um conflito dessa magnitude atinge de forma cruel a vida de todas as pessoas, independentemente de estarem diretamente envolvidos nas razões dos acontecimentos ou de seguirem um modo de vida simples desvinculado de idéias políticas ou militares.

Título Original: L’uomo che verrà
Direção: Giorgio Diritti
País: Itália
Duração: 115 minutos
Ano: 2009

Do Outro Lado

•15/02/2012 • Deixe um comentário

Do mesmo diretor de outro filme que já comentei aqui (Contra a Parede), este segue os passos de um jovem turco em busca da filha da namorada de seu pai, a quem se sente vinculado após uma série de eventos desagradáveis deixarem-na sozinha no mundo. Preocupado com ela e disposto a pagar seus estudos, ele sai da Alemanha, onde mora, e retorna a Istambul, porém descobre que a moça pertence a uma organização radical de esquerda considerada terrorista pelo governo local e que, por causa disso, saiu de casa há meses e vive na clandestinidade sem dar notícias. Sem desanimar, ele envolve os parentes, espalha cartazes e resolve permanecer na cidade até cumprir seu objetivo. Nesse ínterim, entretanto, ela decide procurar a mãe e parte para a Alemanha ilegalmente, no mesmo momento em que o outro protagonista percorre o caminho inverso. As narrativas paralelas envolvem uma série de personagens em comum que, curiosamente, não têm consciência da rede de relacionamentos cruzados e do desencontro no qual estão inseridos. Levou o prêmio de melhor roteiro do Festival de Cannes de 2007.

Além de tratar dos fatos concernentes aos personagens em si, o filme trabalha com o pano de fundo da ligação sentimental genuína que existe entre o indivíuo e sua pátria de origem, mostrando que mesmo as pessoas mais adaptadas continuam vivendo de acordo com as crenças com as quais foi criado e mantendo antigos hábitos, como o uso do idioma nativo. O protagonista, estabelecido em Bremen desde novo e com um emprego invejável, revisita intimamente sua relação com o país natal, assim como um outro personagem, alemão, sente-se impelido a voltar para casa após anos de uma vida confortável na Turquia. Esse toque de saudosismo e de identificação cultural é ainda mais marcante pelo enorme contraste entre os dois países, que diferem em etnia, religião, tradições e vários outros aspectos.

A idéia de mostrar desdobramentos de vidas desestruturadas traz à tona outros assuntos, como o convivência entre pais e filhos, relacionamentos amorosos, abandono e solidão, tornando a trama mais complexa e, por esse motivo, mais interessante de se acompanhar. A abordagem múltipla de temas é feita com cenas que se complementam pela visão diferenciada de cada personagem. Nessa perspectiva, a capacidade de enxergar “do outro lado” permite a compreensão não só do estrangeiro, mas também da própria sociedade e da própria vida.

Título Original: Auf der anderen Seite
Direção: Fatih Akin
País: Alemanha / Turquia
Duração: 116 minutos
Ano: 2007